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19:32 - 17/10/2023
ULTIMA ATUALIZAÇÃO::
Pivô entrevista Anarca Filmes
Anarca Filmes, Usina-Desejo contra a Indústria do Medo, 2021

Combater o olhar colonial através do audiovisual. Esse é um dos desejos que faz mover a produção cinematográfica da Anarca Filmes. O coletivo sediado no Rio de Janeiro é um dos participantes da segunda edição do Pivô Satélite, integrando a exibição virtual O Assombro dos Trópicos, curada por Victor Gorgulho. Para o projeto, o coletivo preparou duas mostras com alguns de seus principais filmes, além de ter realizado uma obra inédita, o filme interativo Usina-Desejo contra a Indústria do Medo. Na entrevista a seguir, Amanda Seraphico, Clarissa Ribeiro e Lorran Dias falam do projeto da Anarca Filmes para a plataforma digital do Pivô e também um pouco da trajetória do coletivo em sua incansável disposição para a experimentação.

 

Leo Felipe: Os filmes da Anarca Filmes trazem inegavelmente uma estética anárquica, mas e quanto ao processo? De que modo uma ética anarquista se manifesta nas diversas etapas de trabalho do coletivo? 

 

Anarca Filmes: Quando a Anarca Filmes surgiu nós estávamos muito influenciades pelas manifestações políticas no Rio de Janeiro ocorridas em 2013, num momento de contato mais intenso com as pautas identitárias e com uma proximidade maior com teorias políticas, então nós sentimos necessidade de nos organizarmos politicamente em relação às hierarquias que estruturam o cinema. Assim, o nome que escolhemos vem mais como uma alusão às perspectivas e comportamentos de algumas organizações da esquerda em relação às hierarquias da sociedade. A gente se inspira na filosofia punk anarquista do “faça você mesmo”, consumindo muitos tutoriais de pessoas que compartilham conhecimento de graça na internet, software livres ou hackeados para construir nossa estética sem nos limitar a busca de uma imagem higienizada, sempre seguindo o bordão “antes feito do que perfeito”. Usamos imagens baixadas gratuitamente e sons de bancos na internet como o freesounds e reorganizamos sons e imagens em outras formas, compartilhamos nosso conteúdo gratuitamente também porque acreditamos que podemos trabalhar na lógica da abundância e não da escassez, que é a base do sistema capitalista. Nossa intenção é criar um universo anárquico de produção de imagens, que envolve outra forma de dirigir um filme, outra forma de filmar ou montar imagens e pensar também em outras formas de distribuir essas imagens, seja na internet ou em espaços que não são necessariamente salas de cinema. Trabalhar sempre em contato com outres artistas, seja via presencial ou pela internet e termos referências diversas, independente de serem ou não consagradas dentro da historiografia do cinema e das artes. Mesmo exercendo algumas funções bem definidas no momento do set, não existe uma verticalidade das relações porque os profissionais que executam as funções mais técnicas também fazem suas decisões estéticas. A gente inverte a cadeia da indústria, nos interessamos não apenas por produtos, mas também por processos. O diretor não é o líder do filme e sim um mediador de saberes. Tudo isso é anarquizar a hegemonia do cinema. A anarquia da Anarca Filmes tem muito a ver com compartilhamento, com uma vontade de que todes participem, que entrem no processo do filme para exercer sua autonomia. A interatividade é anárquica nesse sentido. Tem a ver também com estar abertos aos processos, pensar o roteiro ou o plano de filmagem não como estruturas rígidas, mas como algo mutável, passível de ser aberto às interferências e possibilidades, não controlador.

Anarca Filmes, Usina-Desejo contra a Indústria do Medo, 2021

LF: Do que trata o filme realizado especialmente para o Pivô Satélite, Usina-Desejo contra a Indústria do Medo? Gostaria também que comentassem sobre a possibilidade de interatividade que surge com a plataforma digital. Que tipo de interação o cinema do século XXI pode oferecer?

 

AF: Usina-Desejo Contra a Indústria do Medo é um filme sobre a internet, ele vem de pensamentos sobre cinema expandido, sobre cinema web-specific e sobre como o fazer fílmico se modificou através das décadas. Ele foi feito a partir de um convite de exposição online e esse contexto específico fez com que a gente materializasse vontades antigas de fazer um filme para além de uma sala de exibição tradicional. O contexto pandêmico fez com que a gente consumisse muito mais conteúdos online, festivais, shows, canais do Youtube. Esse contexto está muito impregnado no filme, é o que dá o clima do filme. A intensificação e a hibridização das nossas relações reais e virtuais. Com essa intensificação, vem junto uma certa projeção dos nossos desejos, dos nossos medos, da nossa raiva. A interatividade proporciona que as pessoas se sintam parte do assunto, que elas possam escolher seu caminho dentro do filme porque estão compartilhando desse contexto pandêmico com a gente e talvez compartilhando questões similares. A interatividade vem também da relação com a tecnologia, do fato do espectador não ser apenas um mero consumidor de imagens, ele também é um seletor e produtor de conteúdos, se a gente pensar por exemplo no aumento massivo de plataformas de streaming, ou nos usos das redes sociais.

Essa participação sempre existiu de algum modo, mas agora está cada vez mais assumida. O filme interativo traz a escolha para o estado de consciência do espectador, da valorização do poder dele de decidir. É avançar mais um passo dentro do cinema experimental, que sempre contou muito com essa agência de quem assiste, com um certo “se joga aqui no nosso mundo que você não vai se arrepender do que te espera”. A interatividade que estamos propondo vem muito também dos avanços tecnológicos, que permitem um filme online com programação web e com gifs, que também é uma linguagem específica da internet. Esse filme trata das dificuldades e das formas que a gente consegue trabalhar com a produção e a preservação de imagens hoje. E como isso se constrói a partir de pessoas que estão inseridas em um mercado muitas vezes excludente e, que por causa dessa exclusão, frequentemente precisam criar outras formas de utilizar-se da imagem ou de conseguir trabalho com a imagem. Assim, a internet acaba sendo uma possibilidade nos dias de hoje, que algumas décadas atrás não existia. Uma possibilidade não só de alcance, mas também de simultaneidade com outros espaços. Essa fusão espaço-temporal, permite que novas estruturas surjam dentro da insegurança que é trabalhar no mercado audiovisual brasileiro. É muito interessante quando você, enquanto espectador assistindo o filme, se torne consciente da sua relação com esse mercado. A possibilidade de escolha dos 3 finais diz respeito também sobre o excesso de possibilidades do mundo virtual.

© Lucas Affonso

LF: A primeira sessão de vídeos do programa, Terríveis, apresenta trabalhos realizados em 2018, durante o Projeto ANTI de Residência Fílmica Antifascista. Já na segunda sessão, Tapete Vermelho, temos os principais filmes do grupo, dirigidos por diferentes integrantes. Como o coletivo se articula em relação às poéticas pessoais de cada um(a)?

 

AF: De formas múltiplas, orgânicas e sem fórmulas prontas porque acreditamos na Anarca Filmes como uma proposição, uma catalisadora de iniciativas. Já realizamos desde trabalhos colaborativos, até obras individuais. Durante um tempo a Anarca Filmes se manifestou de uma forma em que cada um contribuia para o selo, porém com o passar do tempo temos experimentado modos de produção que hibridizam as poéticas e estéticas através de processos políticos de comunhão, como as residências fílmicas que surgem como espaços coletivos de aprendizagem com cursos, cineclubismos e reuniões de onde saem contextos e circunstâncias para que filmes aconteçam. Num geral, a Anarca Filmes é uma usina de desejos que apoia mutuamente os sonhos de cada pessoa e também um espaço de convivência da diferença. Mais do que uma produtora audiovisual, ou um coletivo de artistas, nos entendemos como uma proposição de coletividades e de motivos para estar juntes. Nossa vontade é gerir mais espaços de convivência para propor que mais pessoas possam coexistir e se mostrar em suas particularidades por meio da realização de filmes como dispositivos relacionais. Nós jogamos essa ideia para as pessoas e elas começam a se questionar por si mesmas: e se eu fizesse um filme? É muito bonito porque dessa forma a gente toca váries artistas que não são do cinema para fazer cinema e várias pessoas que não são artistas também. Assim criamos uma rede para compartilhar não só conhecimento mas também estruturas como chroma-key, câmera, computador para editar, etc.

Anarca Filmes, Waleska Molotov, dir. Amanda Seraphico, 2017

LF: De certa maneira, Anarca Filmes surge de uma experiência com a vida noturna, no Rio e em Recife, a partir da realização e registro de eventos, teasers de festas e vídeo-clipes. E dentre as estratégias empregadas pelo coletivo para “desvincular o cinema da intelectualidade” está a exibição dos filmes em festas e bares. Quais as potencialidades desse contexto em relação a outros ambientes onde geralmente circula a produção audiovisual?

 

AF: Este foi um método que aconteceu de forma processual! Somente agora entendemos que utilizamos a Noite como um espaço de produção e de distribuição, quase que concomitante, pois não encontrávamos nas instituições e festivais de cinema oportunidades para exibir nossos trabalhos. A grande potencialidade dessa estratégia com certeza é aumentar o acesso a essas sessões de cinema, promovendo eventos gratuitos ou a preço simbólico com entrada gratuita para pessoas trans (política que aprendemos com a cena noturna de Recife). Isso cria um público diverso e nos dá a chance de receber quase que de imediato as opiniões sobre nosso trabalho de pessoas de diferentes contextos e bagagens culturais, enquanto nos festivais, por exemplo, esse público é formado majoritariamente por realizadores e estudantes de cinema. O próprio ambiente que se cria durante as exibições é mais convidativo para que as pessoas expressem suas reações ao filme em contraste com a sala de cinema onde deve predominar o silêncio. É emocionante para nós quando conquistamos essas reações em formas de risadas ou comentários ditos em alto e bom som durante a sessão, sentimos que o que criamos está vivo. Quando realizamos nossos eventos, nós construímos nossa audiência, que vai acompanhar nosso trabalho e ir aos próximos eventos, e inserimos nosso filme em uma cultura já que, além das sessões, trabalhamos em parceria com performers e djs, vinculando nosso trabalho a uma cena coletiva da cidade. Outra grande potencialidade para nós é a possibilidade de não depender da legitimação formal das instituições de cinema, dessa forma nossos filmes podem acontecer alheios ao que é considerado de bom gosto por esse cânone. O que desejamos é nos desvincular de um certo tipo de intelectualidade, aquela que ainda é majoritariamente influenciada por uma perspectiva eurocêntrica do pensamento como uma atividade fria, categórica e totalizante. Acreditamos na potência do que está sendo pensado a partir de pesquisas e experiências de vidas outras, que carregam imensa sabedoria e não necessariamente se constroem nesse reconhecimento. Através do nosso modelo fluido de organização e da forma como percebemos os outros e a nós mesmos, nós nos posicionamos politicamente a favor de várias intelectualidades. A Anarca Filmes vem desmontando tradições da história, da história da arte e do cinema, trabalhando contra a criação do hegemônico que impõem que todos devem ter as mesmas referências.

Anarca Filmes, Barriga Cheia de Imagens, 2019

LF: Existe uma máxima cunhada pelo não-músico Brian Eno: “Honra teu erro como uma intenção oculta”. Já vocês dizem: “Não tem plano que dê errado”. Assim, parece não haver ocultamento da intenção e o erro não surge do acaso, ele é intencionalmente perseguido. Porque é tão importante para vocês “fazer do erro a linguagem”? 

 

AF: Não sabemos se de fato perseguimos o erro, mas certamente ele é acolhido no nosso processo criativo porque sempre haverá uma distância entre o que nós planejamos e o que realizamos. Entendemos que entre imaginar e criar existe um caminho a ser percorrido onde as coisas se transformam. Por isso inclusive muitos dos nossos trabalhos são exibidos em espaços de arte contemporânea e não só de cinema, pois nas artes visuais existe, na maioria das vezes, uma valorização do processo e não somente do produto final. A modernidade tem muitas questões com identidades e perfeccionismos, muitas idealizações de mundos foram expandidas pelo colonialismo e estes processos buscam homogeneizar as formas e discursos. O Brasil vive nitidamente as contradições da diferença, então para nós não faz sentido seguir parâmetros que nós não desejamos alcançar. O erro é parte do processo da vida e o problema sempre existe no processo. A questão é que você pode ficar a vida inteira arranjando culpados para o problema, ou entrar de cabeça para resolver e seguir em frente. É importante acolhermos nossos equívocos pois eles fazem parte daquilo que fomos e não necessariamente aquilo que somos e seremos. A perfeição é uma armadilha que limita as possibilidades de vida, restringe a criação e gera frustração. Quantas vezes não deixamos de fazer algo em nossas vidas com medo de errar? Não existe criação sem erro, é através dele que encontramos os caminhos para qual iremos seguir, os métodos que utilizaremos para solucioná-lo, promovendo nossa transformação pessoal e profissional. É o erro que nos move adiante e não o acerto. Não temos como saber o acerto de antemão, apenas o risco. Garantir que tudo saia como planejado é como se esforçar para que o mundo, que não está dentro de nós, tenha que ser exatamente como as nossas ideias, que estão dentro de nós. Não parece totalitária essa obsessão por um purismo político, estético, poético? Por um belo intocável, irremediável. Além do mais, dentro de um processo criativo nós temos a chance de ressignificar os efeitos desses ditos equívocos e transformá-los em parte da linguagem, indo além do que estava no plano inicial. Muitas vezes não existe a chance de refazer uma cena porque a oportunidade passa, o tempo acaba, o dinheiro acaba, então temos que olhar para aquilo que temos como algo em construção, um desafio que se torna um estímulo para continuar criando. Nós acreditamos na magia do cinema e nos seus mistérios.

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