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Exposição
Janaina Wagner: Baleia Fantasma [Projeto Vitrine]

Pivô realiza, dentro do Projeto Vitrine, ‘Baleia Fantasma’, instalação de Janaina Wagner. A artista desenvolve suas pesquisas em vídeo, desenho, fotografia, instalações e pintura. O ponto nevrálgico de seu trabalho são as relações entre limite, controle e contenção que o humano estabelece com o mundo. 

01/04 - 30/07/23
Texto Curatorial

Em ‘Baleia Fantasma’, ela revisita a história da personagem Baleia, do romance Vidas Secas, de Graciliano Ramos, valendo-se de imagens do filme de Nelson Pereira dos Santos para construir uma instalação fantasmagórica.

Por Ana Roman

Baleia não é a primeira cachorra à qual se dedica Graciliano Ramos em sua literatura. No livro São Bernardo (1934), ele constrói o personagem Tubarão: há uma tradição do autor em usar nomes de seres do mar para nomear cachorros – esta tradição liga-se a uma crença popular de que tal nomeação evitaria a contração de doenças pelos cães. Baleia é, porém, sem dúvida, muito mais marcante do que Tubarão para a Literatura Brasileira. Em Vidas Secas (1938), diante de um cenário de extrema desesperança e desumanização vivido pela família de Fabiano, ela está doente e raquítica, no entanto, mantém-se fiel à família e extremamente amorosa. Ela é o ser mais social do núcleo: através de um narrador onisciente, chegamos aos seus pensamentos e desejos. Seu sacrifício, pelo pai da família, em um momento de desespero diante do avanço da doença, é triste: enquanto recebe os tiros de espingarda de seu dono, anda sobre duas patas como um humano e, em seguida, cai no chão. Lembra-se de suas obrigações com as crianças da família e seu último desejo é sonhar: ela sonha com preás saborosos e com outra vida. Baleia é mais-que-humana.

Na adaptação do livro para o cinema feita por Nelson Pereira dos Santos em 1963, Baleia ganhou projeção internacional e colocou luz à situação de fome vivida na zona árida do Nordeste brasileiro. A Baleia de Pereira dos Santos foi, segundo o próprio diretor, co-roteirista do filme: ela ditou, em grandes partes das sequências, o fluxo da câmera, que a acompanhava. Na cena de sua morte, a câmera fica baixa e assistimos, a partir de sua perspectiva, o momento de seu sacrifício. A extrema realidade da cena e suas expressões levaram a cachorra que atuou como Baleia a Cannes: como prova de vida, ela foi levada ao Festival. No filme, assim como no livro, a cachorra é uma espécie de repositório de toda humanidade.

Em ‘Baleia Fantasma’, Janaina Wagner revisita a história da personagem de Graciliano Ramos, valendo-se de imagens do filme de Pereira do Santos para construir a instalação realizada na Galeria Vitrine do Pivô. Baleia surge no edifício Copan como fantasma. Ela tem escala natural e é projetada por meio de um sistema holográfico extremamente simples concebido por Wagner. Sua aparição é acompanhada de latidos direcionados à rua que corta o edifício por onde circulam diversos cachorros e seus donos durante o dia. A Baleia de Wagner se move, late e nos convida para que nos abaixemos para olhá-la de perto.

A decisão de retratar a cachorra Baleia no contexto atual relaciona-se a um procedimento comum ao trabalho de Wagner: revisitar o arquivo – físico, fílmico e também oral – e explorá-lo em sua contemporaneidade. Os fantasmas são, para a artista, fragmentos de arquivos vivos que pairam entre nós. Não são necessariamente seres que nos assustam: eles apenas permanecem como espectro para nossa lembrança. A personagem Baleia foi concebida em um contexto no qual as políticas sociais eram extremamente escassas diante da desigualdade do país. O cenário modificou-se, sobretudo durante os anos 2000, e implementaram-se mudanças estruturais à sociedade brasileira.

O retrocesso político dos últimos cinco anos, agravado com a crise pandêmica mundial, foi acompanhado de um desmonte em políticas públicas, sociais e do vislumbre de outro projeto de país. Ao caminharmos pelo centro da cidade de São Paulo, no entorno do Edifício no qual se realiza a mostra, somos interceptados constantemente por pessoas que buscam ajuda. Em 2022, o Brasil retorna para o mapa da fome. A Baleia aparece como um fantasma que nos relembra da vulnerabilidade enfrentada por grande parcela da população brasileira nos centros urbanos e fora deles. A imagem fantasmagórica é quase uma nota para olhar de novo para aqueles que são vítimas diretas da necropolítica.

A ‘Baleia Fantasma’ aparece também em um momento no qual a forma de compreensão do mundo antropocênica é questionada e as relações de cuidado interespécies ganham espaço no debate público: o que poderíamos aprender com a cosmovisão dos cães? Quais seriam seus ensinamentos sobre amizade e solidariedade?

Além do cão, a instalação é composta pela fotografia de um muro de pedra ornamentado por esculturas de cabeças de lobos e por um papel translúcido, que cobre o vidro entre a livraria Megafauna e o Pivô. Ambos elementos têm dimensão teatral e remetem a outros fantasmas: as cabeças de lobo criam proteções simbólicas para eventuais ameaças; já o papel translúcido faz surgir espectros e sombras daqueles que circulam dos dois lados do vidro. Os outros, sem nome e que aparecem apenas enquanto silhuetas, seriam fantasmas contra quem deveríamos nos proteger?

Por meio de uma prática que ressignifica o arquivo e a memória, Janaina nos leva a um universo quase lúdico de imagens permeadas por maneiras de compreensão de mundo não humanas e/ou fantásticas. Tais imagens carregam algumas das maiores contradições da sociedade, que são pontuadas pela artista em seus diversos trabalhos.

Artista
Janaina Wagner
Janaina Wagner desenvolve suas pesquisas em vídeo, desenho, fotografia e instalações. Atualmente doutoranda no Le Fresnoy-Studio National des Arts Contemporains (FR), participou de diversas residências artísticas, como Gasworks (UK), VISIO -  European Programme on Artists’ Moving Images (IT), FID Campus – Festival International de Cinema de Marseille (FR), Bolsa Pampulha (BR), PIMASP - Museu de Arte de São Paulo (BR), Red Bull Station (BR), Casa Tomada (BR) e Anarcademia W139 (NL). Dentre as principais exposições, destacam-se as individuais With burning love - Villa Belleville (FR) e Decupagem/ Crônica de um final anunciado - Museu de Arte de de Ribeirão Preto – MARP (BR); e as coletivas Ensaio de Tração - Pinacoteca do Estado de São Paulo (BR), Garganta - CIAJG - Centro Internacional das Artes José de Guimarães (PT), Aliens are temporary - Kunstraum Kreuzberg/Bethanien (DE), Casa Carioca - MAR - Museu de Arte do Rio de Janeiro (BR) e 4o Prêmio EDP nas Artes – Instituto Tomie Ohtake (BR). Wagner vem participando diversos festivais nacionais e internacionais de cinema, como Mostra de Cinema de Tiradentes (BR), Festival do Rio (BR), 25 FPS festival (SL), Encounters Film Festival  (UK), Vienna Shorts (AT) e Short Waves (PL). Selecionada para Berlinale DOC Station 2023, Janaina atualmente desenvolve seu primeiro longa metragem, o documentário experimental A Mala da Noite.

janainawagner.com

Baleia Fantasma

Pivô realiza, dentro do Projeto Vitrine, ‘Baleia Fantasma’, instalação de Janaina Wagner. A artista desenvolve suas pesquisas em vídeo, desenho, fotografia, instalações e pintura. O ponto nevrálgico de seu trabalho são as relações entre limite, controle e contenção que o humano estabelece com o mundo. 

Em ‘Baleia Fantasma’, ela revisita a história da personagem Baleia, do romance Vidas Secas, de Graciliano Ramos, valendo-se de imagens do filme de Nelson Pereira dos Santos para construir uma instalação fantasmagórica.

 

 

Texto Curatorial

Baleia não é a primeira cachorra à qual se dedica Graciliano Ramos em sua literatura. No livro São Bernardo (1934), ele constrói o personagem Tubarão: há uma tradição do autor em usar nomes de seres do mar para nomear cachorros – esta tradição liga-se a uma crença popular de que tal nomeação evitaria a contração de doenças pelos cães. Baleia é, porém, sem dúvida, muito mais marcante do que Tubarão para a Literatura Brasileira. Em Vidas Secas (1938), diante de um cenário de extrema desesperança e desumanização vivido pela família de Fabiano, ela está doente e raquítica, no entanto, mantém-se fiel à família e extremamente amorosa. Ela é o ser mais social do núcleo: através de um narrador onisciente, chegamos aos seus pensamentos e desejos. Seu sacrifício, pelo pai da família, em um momento de desespero diante do avanço da doença, é triste: enquanto recebe os tiros de espingarda de seu dono, anda sobre duas patas como um humano e, em seguida, cai no chão. Lembra-se de suas obrigações com as crianças da família e seu último desejo é sonhar: ela sonha com preás saborosos e com outra vida. Baleia é mais-que-humana.

Na adaptação do livro para o cinema feita por Nelson Pereira dos Santos em 1963, Baleia ganhou projeção internacional e colocou luz à situação de fome vivida na zona árida do Nordeste brasileiro. A Baleia de Pereira dos Santos foi, segundo o próprio diretor, co-roteirista do filme: ela ditou, em grandes partes das sequências, o fluxo da câmera, que a acompanhava. Na cena de sua morte, a câmera fica baixa e assistimos, a partir de sua perspectiva, o momento de seu sacrifício. A extrema realidade da cena e suas expressões levaram a cachorra que atuou como Baleia a Cannes: como prova de vida, ela foi levada ao Festival. No filme, assim como no livro, a cachorra é uma espécie de repositório de toda humanidade.

Em ‘Baleia Fantasma’, Janaina Wagner revisita a história da personagem de Graciliano Ramos, valendo-se de imagens do filme de Pereira do Santos para construir a instalação realizada na Galeria Vitrine do Pivô. Baleia surge no edifício Copan como fantasma. Ela tem escala natural e é projetada por meio de um sistema holográfico extremamente simples concebido por Wagner. Sua aparição é acompanhada de latidos direcionados à rua que corta o edifício por onde circulam diversos cachorros e seus donos durante o dia. A Baleia de Wagner se move, late e nos convida para que nos abaixemos para olhá-la de perto.

A decisão de retratar a cachorra Baleia no contexto atual relaciona-se a um procedimento comum ao trabalho de Wagner: revisitar o arquivo – físico, fílmico e também oral – e explorá-lo em sua contemporaneidade. Os fantasmas são, para a artista, fragmentos de arquivos vivos que pairam entre nós. Não são necessariamente seres que nos assustam: eles apenas permanecem como espectro para nossa lembrança. A personagem Baleia foi concebida em um contexto no qual as políticas sociais eram extremamente escassas diante da desigualdade do país. O cenário modificou-se, sobretudo durante os anos 2000, e implementaram-se mudanças estruturais à sociedade brasileira.

O retrocesso político dos últimos cinco anos, agravado com a crise pandêmica mundial, foi acompanhado de um desmonte em políticas públicas, sociais e do vislumbre de outro projeto de país. Ao caminharmos pelo centro da cidade de São Paulo, no entorno do Edifício no qual se realiza a mostra, somos interceptados constantemente por pessoas que buscam ajuda. Em 2022, o Brasil retorna para o mapa da fome. A Baleia aparece como um fantasma que nos relembra da vulnerabilidade enfrentada por grande parcela da população brasileira nos centros urbanos e fora deles. A imagem fantasmagórica é quase uma nota para olhar de novo para aqueles que são vítimas diretas da necropolítica.

A ‘Baleia Fantasma’ aparece também em um momento no qual a forma de compreensão do mundo antropocênica é questionada e as relações de cuidado interespécies ganham espaço no debate público: o que poderíamos aprender com a cosmovisão dos cães? Quais seriam seus ensinamentos sobre amizade e solidariedade?

Além do cão, a instalação é composta pela fotografia de um muro de pedra ornamentado por esculturas de cabeças de lobos e por um papel translúcido, que cobre o vidro entre a livraria Megafauna e o Pivô. Ambos elementos têm dimensão teatral e remetem a outros fantasmas: as cabeças de lobo criam proteções simbólicas para eventuais ameaças; já o papel translúcido faz surgir espectros e sombras daqueles que circulam dos dois lados do vidro. Os outros, sem nome e que aparecem apenas enquanto silhuetas, seriam fantasmas contra quem deveríamos nos proteger?

Por meio de uma prática que ressignifica o arquivo e a memória, Janaina nos leva a um universo quase lúdico de imagens permeadas por maneiras de compreensão de mundo não humanas e/ou fantásticas. Tais imagens carregam algumas das maiores contradições da sociedade, que são pontuadas pela artista em seus diversos trabalhos.

 

Ana Roman



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