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19:36 - 17/10/2023
ULTIMA ATUALIZAÇÃO::
Pivô entrevista Rebeca Carapiá

Neste momento de confusões energéticas agravadas por uma crise sanitária sem precedentes e um cenário político funesto, é preciso mobilizar todas as forças para resistir às “descargas atmosféricas tóxicas” emitidas diariamente. Assim, poderíamos considerar os “Para-raios para energias confusas”, de Rebeca Carapiá, além de obras de arte, dispositivos de proteção e conexão espiritual, ferramentas mobilizadoras de uma ancestralidade que fala também do futuro. Os para-raios são fruto de saberes e fazeres que oscilam no contínuo espiralado do tempo. A obra que inaugura a plataforma digital Pivô Satélite, como parte do projeto Os dias antes da quebra, curado por Diane Lima, se apresentou para a artista em um sonho, exatamente da maneira como deveria ser produzida. “Estou sempre partindo da performance e do ‘ser sendo’ das ‘coisas’, sem explicá-las”, ela conta. “Anuncio que os Para-raios vieram até mim num sonho e já eram o que são, em sua forma, título, montagem e tudo mais. Por isso digo que já sabiam o que eram”. Na entrevista a seguir, a artista nos ensina, antes de tudo, que não será fazendo uso dos referenciais pertencentes ao arquivo da branquidade que lograremos acessar o seu trabalho.

 

Leo Felipe: O filósofo Boris Groys afirma que muito do que hoje experimentamos como ciência é, na verdade, uma mitologia arcaica: por não ser compreendida, a ciência se apresenta como magia. Seu novo trabalho parece propor algo semelhante: um tipo de crença ancestral e ao mesmo tempo tecnológica. Que tipos de tecnologia lhe interessam? 

 

Rebeca Carapiá: As tecnologias ancestrais as quais estou conectada, não fazem parte de um lugar inominável, invisível, irracional, inexplicável ou que se conectam apenas com o passado, basta uma olhada rápida na estrutura que estamos inseridas para perceber quantas de nossas descobertas e saberes foram tornados incompreensíveis pela estrutura de invisibilização brancocêntrica. A ideia de ciência, de magia e de tecnologia dentro desta estrutura negligencia a ancestralidade e a espiritualidade, em suas relações narcisistas e autocentradas.

Os “Para raios para energias confusas”, assim como minha pesquisa “Como colocar ar nas palavras”, propõem uma relação que envolve códigos, língua e linguagem para dizer sem explicar. Uma cosmologia que se materializa nas esculturas e nas escritas cheias de ar que   performam “um ser sendo”. Penso que criar ferramentas, experimentações, materialidades nos ajuda a produzir um deslocamento não linear onde é possível ver, entender e perceber esses saberes e fazeres. São essas tecnologias que me interessam.

Quando imagino cinco objetos que conduzem e dissipam na terra energias confusas, feitos para serem instalados no topo de nossas cabeças, estou dizendo que podemos, a partir desse imaginário ficcional, nos conectar e encontrar saídas para atravessar dias turbulentos e isso não é sobre salvação, mas sobre conexão e tempo. Encontrar um caminho para contornar a impossibilidade de movimentar-se nos espaços que para nós envolve a geografia, as vulnerabilidades e as pressões emocionais. Dentro do manual descrevo a ativação dos “Para-raios”: “Para iniciar a conexão, esfregue as mãos e sopre o ar quente da boca no topo de cada Para-raio”, essa é uma ativação no invisível que só é possível na presença. E esse é o próximo passo para esse trabalho, uma instalação que se materializa no espaço e na presença, assim que for possível.

 

LF: Como escultora, como você articula as tensões entre a materialidade e a virtualidade? Quais são os problemas e procedimentos implicados na transformação do átomo em pixel?

 

RC: Concebendo os para-raios em diálogo com o digital, tento tensionar exatamente o limite entre a recusa de realizá-los na sua dimensão material (fora do virtual) e o próprio processo que se torna obra e objeto. Ancorada na pergunta anterior, reflito a ancestralidade que envolve a realização da escultura em todos os seus processos, desde a relação de respeito com o metal até os seus desdobramentos de conexão, reza, densidade, força, grito e fogo.

Esse talvez tenha sido o maior desafio para colocar os “Para-raios para energias confusas” no mundo e sinto que sua própria necessidade de se anunciar me conduziu à expansão dele em si mesmo. Porque, veja, essa analogia proposta entre o átomo e o pixel não seria demasiadamente superficial para imaginar um conjunto de esculturas que se anuncia num sonho e que em sua própria performance já sabe o que é?

Os “Para-raios” se realizam entre o visível e o invisível, dentro daquilo que se pode tocar e também dentro do que não se pode ver. Me aproximo aqui tanto dos conhecimentos incorporados e das tecnologias ancestrais, para pensar que os corpos contemporâneos e racializados como o meu conduzem o tempo do agora para que não esqueçamos de ontem e realizemos a partir de nós mesmas o amanhã. É no fazer dessas tecnologias que nós nos atualizamos, produzimos nossas existências e conduzimos as ferramentas disponíveis para dizer sem explicar.

Não conseguiria imaginar uma superfície lisa e linear onde estão apenas as tensões que envolvem a materialidade e a virtualidade já que me proponho a pensar a existência no “entre das coisas” e isso envolve muitas outras camadas. Talvez essa relação se tencione ao que podemos pensar como presenças diferentes para o espaço, é o que estou tentando entender com este trabalho, ao expandir a escultura imaginei que ela só poderia continuar dizendo se fosse preparada para habitar esse espaço, já que de outro modo isso não seria possível.

Já as outras presenças envolvidas em sua realização estão acessíveis para quem se enverga e acredita no invisível como diz no Manual de instalação: Para-raios para energias confusas.

LF: O Manual de Instalação que acompanha os para-raios é uma pequena peça literária escrita em um tom tão afetuoso quanto irônico. Em que medida o humor pode/deve ser mobilizado na luta antirracista?

 

RC: Aprendi na minha casa e no Bairro do Uruguai que o riso no canto da boca significa muitas coisas. Também recentemente ouvi de biaritzzzzz, outra participante desta exposição, que a ironia é coisa muita séria. Aprendi a dizer muitas coisas sorrindo com gosto de choro na boca, isso porque a ironia sempre me acompanha e é assim que por aqui damos a volta nas coisas. Percebo esse tom como língua e linguagem periférica, esta que não nos deixa afogar em dias de alagamentos.

Não saberia dizer a medida das “coisas” para uma luta antirracista porque penso que algo assim está no desejo e na necessidade de quem luta, e se tratando da luta antirracista vai depender de qual posição você está e o quanto está comprometida para saber e decidir qual arma escolher.

 

© Rebeca Carapiá, Para-raios pata energias confusas – modelo 3D, video stills, 2020
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