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19:33 - 17/10/2023
ULTIMA ATUALIZAÇÃO::
Pivô entrevista Diambe da Silva
Diambe da Silva, joão VI, prç VX, série Devolta, 2021

Tomando a coreografia e a construção coletiva como estratégias para transitar por ambientes distintos, Diambe da Silva  vê na repetição de gestos intencionados possibilidades para novas experiências que admitem erros e acidentes, permitindo a interação de corpos no espaço. Sua proposta para o Pivô Satélite, AMACDIAMBE – Associação de Amigas e Comparsas da Diambe, apresentou na plataforma digital dois vídeos inéditos: joão VI, pça XV (da série Devolta) e Einstein Remix, como parte do projeto O Assombro dos Trópicos, curado por Victor Gorgulho.

 

Leo Felipe: O uso que você faz do conceito de coreografia é bastante peculiar. É a partir daí que você pensa o trânsito entre as esferas da produção artística, da colaboração coletiva e da ação pública. O conceito também serve como uma espécie de álibi, oferecendo respaldo jurídico para as intervenções da série Devolta. Você poderia comentar esta abordagem e seus desdobramentos?

 

Diambe da Silva: Coreografia acabou sendo um codinome que tenho usado para falar de alguns processos com seres vivos, seja com pessoas, raízes, tubérculos, monumentos, professores, críticos de arte, policiais; entre o campo da arte e o campo da sociedade. Quando reconheci como coreografia, naveguei mais junto com as movimentações das pessoas espontâneas, que passam na rua também seguindo seus passos marcados e às vezes desviando deles. Nas situações que chamei de coreográficas, lido com intenções, repetições, sinais, tempos, e deixo elas abertas a incorporações diferentes. Quando falo de coreografia estou falando das instruções, mas principalmente das ações inesperadas.  Desse jeito eu não sou coreógrafa, mas também sou coreógrafa porque conheci ali uma estratégia para abrir lugares e tornar mais possível a existência de ações desobedientes às instruções poderosas.

Como funciona minha coreografia? Ela começa muito antes do início e o término é bem depois do fim e, se for uma contravenção na rua, como é o Devolta, eu fico algum tempo observando esse pedaço de mundo, semanas antes. Depende muito de quem eu chamo para participar, se estou/estamos cansadas ou descansadas na hora e se consigo/conseguimos chegar no espaço ou não. No momento da situação, é comum que perguntem se o que vamos fazer na praça é um trabalho religioso, por causa de nossas vestimentas, assim como repetidas vezes a polícia aparece nos momentos finais, para performar a colonialidade a defender um monumento simbólico. Os monumentos simbólicos agem no real. Às vezes no mesmo lugar os espectadores debatem se é arte ou vandalismo, às vezes registram, às vezes denunciam, comentam. A coreografia, no caso específico Devolta, acaba despertando ações coloniais que já estavam ali pelas estátuas, pelas rondas da polícia militar e por algumas das pessoas. Mas ela começa no café-da-manhã, ou ainda semanas antes, também está acontecendo no atravessamento da cidade e no encontro em determinados locais e só termina se todo mundo chegou legal em casa.

Entendi, com uma lei municipal, que coreografia é como uma chave que diferencia meu trabalho do que se entende “terrorismo”, “alteridade”, ou “arte relacional”, é também álibi para redistribuição do fogo. Eu, podendo ser livre, intenciono ser eu=você. Mas para assumir como somos iguais, vejo sempre importante assumir ≠ : meu corpo é alvo de violências e policiamentos na rua e isso tem a ver com passos historicamente coreografados. E eu gosto de contar de novo histórias que me cantaram a pedra errado. Outros trabalhos que lidam com coreografias são as Mucosas, seres feitos de raízes que depois de um tempo começaram a brotar e dançar por si só, porque estavam vivas. Eram raízes, comestíveis, algumas apodrecem, outras brotam. Geralmente coreografias, aquelas que eu faço, lidam com coisas vivas e reciprocidades.

LF: Um dos tantos elementos não aparentes na coreografia de Devolta é a camiseta que você costuma vestir durante as ações, em que lemos a frase-manifesto Ñ serei bicha presa por arte. Seria essa peça de roupa uma espécie de talismã, visando sua auto-proteção? Como tem sido seus embates com o poder público durante as intervenções?

 

DS: No caso de Devolta, todas as vezes que a polícia aparece para performar é no final. Eu tomo nota dos tempos de ronda policial algumas semanas antes. A polícia no Rio de Janeiro é muito violenta e sanguinária, ainda mais na periferia, que é onde eu/nós em boa parte moramos, ainda mais com pessoas negras e não brancas, que também somos em maioria. A partir das ações em monumentos, fui levada para a delegacia de fato quando fizemos o anel de fogo em torno de Isabel, em Copacabana e a abordagem foi truculenta. Na delegacia eu fui falar com o delegado, falei pausadamente que o que eu estava fazendo era uma coreografia (não disse performance) e a polícia não pôde senão entender que aquilo estava de acordo com a Lei 5.429 do município do Rio de Janeiro, que levo comigo e que diz que danças e outras artes de rua podem ser realizadas no espaço público. Por isso, sempre debaixo da minha roupa pessoal, eu levo a camiseta Ñ serei bicha presa por arte, e debaixo dela, eu carrego duas folhas de papel com essa lei da artista de rua, são outras peles que carrego comigo nessa dança. Nem todas ficam expostas e nem estou em exposição para expor as vulnerabilidades do meu corpo, na delegacia ainda estávamos na dança.

A lei municipal do RJ regula algumas expressões artísticas dentro de limites que me são úteis, não pesquisei em São Paulo ainda. Preciso sempre lembrar que meu corpo ocupa, também nesses limites da cidade , lugares na sociedade e lugares no campo violento das artes. Lá me perguntaram se eu integrava algum grupo político e eu disse que era “representante de um coletivo artístico de uma pessoa só, que se chama Diambe da Silva”. Vou lembrar que o Rafael Braga foi preso com Pinho Sol na mochila. O que eu, uma bicha preta afeminada, faria com dez litros de gasolina na mochila? Não vou dizer que é política. Eu quando estou fazendo arte abstrata estou fazendo arte política tbm. Desse jeito, quando faço arte política, posso dizer que é arte abstrata, dança. Eu não impedi a passagem de ninguém e nem causei dano a patrimônio algum, mas criei uma imagem. Conheço arte, sei que nem sempre é legal. Particularmente, espero que em algum tempo os monumentos sejam recolhidos para a reserva técnica de museus com suas marcas e chagas.

 

LF: Em Einstein Remix você realizou um experimento coreográfico adaptado ao contexto pandêmico, em que a ação colaborativa, que geralmente ocorre no espaço público, é transferida para o ambiente digital e particular de cada um. Como surgiu a ideia de “reler” o poema de Ricardo Aleixo?

 

DS: Eu andava lendo esse poema do Ricardo Aleixo para algumas pessoas, até que um dia em vez de ler eu apenas mostrei e pedi para uma pessoa ler para mim. Ela ficou um tempo juntando os pedaços, porque é um poema visual que organiza as palavras de jeito diferente. Parece um jogo de xadrez ou uma pista de dança, daquelas de espaços quadriculados. Até ela conhecer o código de juntar aqueles espaços, eu fiquei ouvindo curiosa um monte de cacos de som sendo juntados. Eu ainda achava que o poema era aquilo que eu lia, mas então eu entendi que era também a parte em que eu ainda não entendia. Eu já sabia que Ricardo era um artista visual babado, incrível, e já tinha lido o Pesado demais para a ventania inteiro, mas naquela hora o poema apareceu de novo, como se fosse novo. Foi quando começou essa situação, no meio dos nossos confinamentos em 2020, quando sentia vontade de conversar com alguém.

A gente sabe que epidemias podem durar décadas e mexem com todos os nossos esquemas de sentimento, desejos de cura, possibilidades físicas, mentais, corpóreas. Nós como mundo já vivemos outras infecções, são fatos que a gente não sabe como vamos sair no final. Então eu fazia a proposta a pessoas que eu conheço “você lê um poema para mim?”, era sempre o mesmo poema, ligávamos o vídeo e batíamos papo e então eu escutava. Precisava ser a primeira vez que a pessoa encontrava esse poema e assim era sempre diferente, e eu escutando um poema todo novo. Então ER veio desse gesto cotidiano, mas no vídeo só entra o poema, remix mesmo. Tem segredos que ficaram de fora. Eu pensava em fazer no espaço físico. Quando recebi o convite do Pivô Satélite, o trabalho estava ali, agora no espaço virtual, como se fosse um coro, de pessoas falando todas juntas dessa vez, tendo uma mesma informação e processando o beabá de jeitos diferentes. É como tenho entendido a vida: a vida carrega informações, metaboliza problemas e busca se manter viva, automultiplicando e mesmo usando uma tecnologia de guerra que é a internet.

Mayara Velozo e Thais Iroko, Máscara de corpo, 2021
Guerreiro do Divino Amor, SuperRio SuperFicções, 2021

LF: A despeito de todas as adversidades, o Rio de Janeiro tem apresentado uma cena de arte fervilhante. Alguns dos agentes dessa nova cena participam como comparsas em suas proposições. Gostaria que comentasse sobre esse processo de colaboração, que, presumo, seja de via dupla.

 

Dependendo de quem você é e de onde você vem, não é seguro para você ir sozinha nem numa delegacia nem num espaço de arte. Eu tenho comparsas, não são muitas nem poucas e eu sou uma pessoa que preciso de tempo até criar intimidade, mas acho que somos interdependentes entre nós quando fazemos ritos de intimidade. Mesmo quando faço trabalhos individuais (pintura, gravura, costura, escultura), não sou a única força agindo ali naquele campo ou naquela superfície. Quando falo de comparsas me refiro a que/m? Àquelas com quem colaboramos para fugir de passos marcados, quero dizer que trabalhamos ali diferente do que acontece com o dinheiro e outros recursos que acabam. Existem outros valores que nos juntam. Várias das pessoas que chamo de comparsas depois me chamam para colaborar nos trabalhos delas e eu estou junta também. Outro dia duas comparsas, que são a Mayara Velozo e a Thais Iroko, me chamaram para colaborar com um gif delas para o Galpão Bela Maré em um processo mega incrível lá na quadra do Salgueiro, por exemplo. Então a gente se agrupa de novo.

Outro caso é quando fiz um desenho de fogo seguindo as linhas modernistas do calçadão de Copacabana, quis tornar visível essa ação como anticorpos do modernismo, um desenho de fogo diferente dos monumentos dos monarcas, mas que está neles implicado. Envolve risco, é um cartão postal, é longe da minha casa. Eu chamei o Guerreiro do Divino Amor para participar e ele foi. Pouco tempo depois ele me perguntou se podia incorporar desenho da Atlântica nas SuperFicções que ele faz, e eu topei. Quando vi a imagem que ele tinha orquestrado no painel, eu reconheci o meu trabalho junto, era um feat. O Guerreiro estava no meu trabalho e eu no dele. Minhas comparsas são referências para mim e arte ainda é um codinome temporário para falar de práticas muito mais abundantes e cotidianas. Nem tudo que é legal é arte, muito pelo contrário, mas arte é o meu sustento atualmente, acredita? Às vezes é difícil acreditar, mas se torna mais real quando percebo que não estou sozinha.

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