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15:05 - 29/02/2024
ULTIMA ATUALIZAÇÃO::
‘na falta de áreas com terra, reencantar o concreto’, de Rastros de Diógenes

esse ensaio-receita é também um arquivo-hiperlink, mapa-canteiro, processo-memória e uma carta de tarô-lembrança oracular.

aqui planto algumas palavras suculentas, daninhas y carnívoras,

irmãs de caule, folha, seiva, sementes de longe, daqui, de onde.

 

panorama I

não há linearidade. tem coisas que vem primeiro e ocorreram no meio, outras ocorrem agora enquanto escrevo. cultivos sazonais, coletas trimestrais, germinações semanais, culturas cotidianas…  desejos da trajetória físico-virtual de um corpo usuário, terralogado entre perspectivas offline e o que conecta uma rede-autônoma-temporária de memória híbrida, contra binária. parte dessas notas foram organizadas na parede central do ateliê

 

 

panorama II

 

algo em ritmo e ritos que conduzem meu corpo em uma andança no caminho que faço entre um ponto do jaguaré e o centro. nesse percurso, encontro com ipês, jacarandá, sibipiruna, babosa, urucum, palmeiras, aveloz  aroeira e mororó; plantas, árvores, forrageiras

que reconhecemos, esquecemos, virando a esquina.

num jogo da memória híbrida, o tempo é uma trança em processo.

enquanto escrevo o marco temporal é debatido no congresso, as formigas da embaúba sobem no telhado, uma nova frente fria chegou em são paulo, charmaine, beatriz e vânia, sonharam. abi acende uma vela laranja no espaço e elly escrevia e observava concentrada, ao meu lado, maria costura uma pintura e um pouco mais além, reset. marina organizava confetes, diogo um balão e em ambos hemisférios guerras e genocídios em curso

reconheço o metabolismo desse chão.

//                           estratégias

aplico a pedagogia dos canteiros[1] com ela gero as metodologias em torno

do que já está plantado, como uma análise das relações de manejo público/privado organizadas na paisagem urbana.

planejo um pequeno ecossistema baseado na experiência climática local

e sua conexão com o todo. carrego comigo algumas sementes: milho, feijão, abóbora, girassol e favas dedicadas aos deuses. quero com elas brotar estórias, fabular novas ou outras memórias de encontro ao que não vivemos, mas está em nós. carregar, trocar e plantar essas sementes por onde vou, trata da conexão que penso em gerar,

pois cada uma delas em sua cultura, conduz

a lugares, temporalidades e humanidades ancestrais-presentes diversas.

terra_

tenho terra colhida brevemente num canteiro da praça da república…

enquanto recolho e observo a paisagem, meninas que atuavam na praça

me perguntam o que estou fazendo e nisso, trocamos sobre plantar em lugares fechados, ausência de luz e ar, de quem é a terra da praça da república…

até que me contam do mercado das flores.

no largo do arouche a terra tem valor, 10 o pacote de 1kg.

a terra vendida no arouche vem do interior do estado.

a terra treme no caminhão que circula de dentro pra dentro na cadeia de redistribuição

de terra, destinada a plantação, as obras, empreendimentos e propriedades. essas escalas aqui são interpretadas como condicionantes das paisagens de agora. do modo colonial

de habitar a terra.[2]

a terra não sai da terra, apenas se altera dentro dela, ganha valor, medida, peso.

a terra que tenho em mãos vira cama para as sementes em muvuca.

treme terra.

 

água_

charlene me pergunta se a corda conduz a água…

acho isso tão bonito de se pensar…

depois – e o que fica pra você dyó?

respondo que pra mim, memórias…

 

pra nós, el niño y la niña.

 

para manter o sistema irrigado, experimento fios de sisal conectados entre um pequeno vaso de barro e os pequenos montes de terra em muvuca. a corda conduz a água do vaso aos pequenos montes de terra que foram organizados diretamente no chão, a fim de infiltrar o concreto, reencantar na tentativa do “dano”, como daninha mesmo, além de  provocar

as  rachaduras necessárias para uma raiz pivotante.

 

luz

agora é inverno e logo mais será primavera. por volta das 15:40 o sol

se aproxima e entra. observo entre final de julho e início de agosto…

após esses meses, a luz se afasta banhando somente o chão da varanda…

da varanda observo o que me pareceu uma jovem embaúba, observando melhor, rômulo

diz que pode ser outra, lembra a quantidade de pontas das folhas de embaúba

e de como lhe foi ensinada a receita de chá.  lembro que embaúba é muito generosa,

é casa, abrigo… por cima, um pássaro que não saberíamos identificar agora. seu fruto

e folha são alimento; dentro do caule oco formigas habitam, por fora a seiva é solicitada

por cigarras e abaixo próximo de suas raízes, mudas que crescem a meia luz solar. embaúba pioneira, atua na regeneração das matas degradadas de todo brasil.

não as vejo por aqui com frequência. em niterói é minha vizinha.

 

as paredes de vidro proporcionam boa iluminação, as sementes começam a brotar

em poucos dias, algumas despertam antes de outras e a terra do arouche e da República fazem sentido para algumas culturas.

pergunto e mapeio:

onde se encontram cerrado e mata atlântica no meio da cidade, dos jardins de b. marx,

das paisagens artificiais e vegetação exótica?

 

há cerca de 3 árvores de Urucum na rua são bento.

no cruzamento entre a rua são bento e major daniel.

tem também num canteiro próximo ao ‘estadão’.

colhi algumas folhas e frutos para fazer chá

e continuei um caderno em que urucum é contador de histórias.

a árvore mais velha da cidade é uma figueira, não nos encontramos durante a estadia.

 

 

panorama III

 

há uma tempestade em andamento. estou abrindo uma carta de tarô para cada interessade.                                               3 cartas às vezes, o tempo que voa parece sobrar.

15h alguém se debruça na varanda observando o movimento lá fora.

era claro como um dia previsível de primavera.

15.40h saímos em bando para contemplar uma tempestade que lavava os prédios e ruas.

 

a gente sente, a terra também.

a chuva passa, o dia retoma sua iluminação,

o sol sempre esteve alí.

 

tempo

quando escrevi notas sobre cultivos hibridos e outras memórias da seiva [3]

me interessava performar biofilias atlânticas, para a qual minha localização-desejo-pesquisa

me encaminhou pensar organicidades em acordo com o acervo terroso, decomposto.

um circuito efêmero de arte oferenda, altar, plantação, medicina, partilha.

a trança é esse símbolo conector, técnico, artesanal e antigo.

no cerne da paisagem paulistana, penso na natureza plástica, industrial.

no culto ao que não se decompõe como objeto-acervo.

assim uma nova trança é forjada, não mais enquanto ybyratyba e sim numa outra configuração. agora sintética, para pensar na antiga kaa’guaçu, agora ka’a itá-guacú (mato de pedra grande). a trança sintética que conectava um altar no interior

do ateliê até a parte externa da varanda ganhou mais de 50m e foi realizada a várias mãos.

maria, abi, mayara velozo, nicolau andreas e luä ayo.

concreto capilarizado.

camadas que envolvem o estado bruto da matéria e o reflexo industrial incorporado

ao corpo como extensor, ou mesmo conector de perspectivas plásticas.

essa trança caminha agora por outras paisagens.

 

lembro que nas grandes cidades dessa parte do mundo solo, água e ar estão

em processo de contaminação, se já não poluído ou desmatado, o calor cada vez mais forte atua também na produção das memórias híbridas entre corpo gente e planta, tudo seca.

a tentativa do cultivo é envolvida por esse processo de mundo em andamento…

 

pergunto e mapeio enquanto trago um cigarro.

quantas espadas de são jorge são necessárias para filtrar o ar?

quantas babosas serão necessárias pra lembrar que o babado é forte?

 

enquanto isso no rio, poéticas de contaminação:

procura-se vegetal extinto, vulnerável, raro e vivo.

mainha, mapô e pâmela me ajudam a procurar e carregar babosas gigantes.

 

quando volto, conecto-me com outras estruturas_corpos_instutuições e paisagens.

quero trocar estratégias de cultivo,  intercambiar o chão que pisamos,

de dentro pra dentro da terra.   recebo sementes crioulas de mariana, sementes olho de boi de abi, sementes de feijão e fruta de elly, sementes frutíferas de crystal, sementes e terra de compostagem de sérgio e tudo isso vai se aglomerado nos montes de terra, nas conversas que por algum motivo nos levavam ao cultivo de ideias, processos, plantações.

 

até que instauramos sementeiras radicais

a sementeira radical é pensada por perspectivas de cultivo originárias de abya yala

e asiática, envolvendo tecnologias como a muvuca, o mutirão, as bolas de sementes.

é uma forma de redistribuir a paisagem natural com frutíferas, leguminosas, ervas e árvores.

 

reflorestar o pensamento

 

instruções para realizar a sementeira radical:

tenha em mãos um pouco de sementes, argila, terra e água.

o primeiro passo é a muvuca, seguida do processo de esculpir envolvendo argila

na muvuca, utilize água para facilitar o manejo. após chegar ao formato da escultura, preencha sua superfície com outras sementes. deixe que seque por 24 horas na sombra, antes de depositar numa área destinada à plantação. a sementeira deve distribuir

as sementes conforme o condicionamento climático da paisagem em que for depositada, não requer preparo da terra ou irrigação contínua. a medida em que chove,

a vida em cada semente é convocada ao despertar.

 

durante o campo aberto, realizamos uma vivência em torno da sementeira. participaram desse momento: elly, maria de los angeles,  abiniel joão, beatriz cruz e rodrigo lopes.

as sementeiras deste dia destinam-se ao despacho por canteiros e praças do entorno.

 

angiospermas ensinam práticas de retorno.

 

cultivos intercalados:

 

com os pés molhados pelo atlântico, numa lua nova em libra, eu e a parceira pedra silva nos reuníamos para atuarmos em três praias de fortaleza no exercício de gerar ‘aparições

a beira mar’ juntamente com sementes, areia, barro, água do mar, besouros, cachorros, humanos, plantas e o pôr do sol de cada anoitecer. como um intercâmbio entre

as ‘Mem(Orí)as de quintal’ de pedra e a ‘Sementeira Radical’… intercâmbio do chão

que pisamos. as aparições são compostas de matérias orgânicas coletadas na vegetação atuante nas  orlas da cidade; contadoras de histórias e alembramentos

do que não é contado, cujo arquivo em presença se mistura no quebra-mar

em constante revitalização, modernização, persiste o plástico e o concreto entre restinga.

 

as ‘aparições’ são aqui um manifesto do ancestral latente entre praia e interior,

entre as cosmologias do mar que banha um litoral em comum,

o rastro pendular de uma pesca, de um rito dançado na areia, de um toque

pra rainha das águas, uma despachagem de praia, um mergulho, o resquício do invisível que faz morada na beira, na ponta e por baixo da ponte, na tangente da maré alta,

no que se trás e carrega no vai e vem das ondas.

plantamos girassóis. dedicamos a cada ponto da orla em que estivemos

e a cada grupo de aparições, uma raiz alimentícia, como uma correspondência para terra

na espera de que se plante em algum tempo pra frente, para atrás e aqui no meio.

inhame, macaxeira, batata doce.

parceiras na força dos braços que incorporam o que aparece, o que avisa,

o que denuncia, o que nutre e assusta numa mesma encruzilhada.

talvez nada disso dê conta dos dias de trabalho que tivemos, mas fica o registro.

nos dias mais quentes fico prestes a virar xerófila.

[aquelas que resistem ao calor, dançam com o sol]

numa sensação térmica de 48°C, penso em abya yala, outros nomes para esse território antes de américas. conecto-me à névoa faminta atuante por entre montanhas no outro

trópico. nesse convite afetuoso de rodrigo d’alcântara, gero um intercâmbio entre esse chão a distância e em constância, como forma de articular fabulações além do perímetro brasil. os desenhos conduzidos por rodrigo formulam a paisagem cuja extensão articula-se com ceci, simone e bento, como uma zona de calor real-virtual que estabelece memórias-prints  transfronteiriças em meio à crise climática. uma ‘Guanabara Glitch’, uma aparição em mata flechada, tipografias para lembrar abya yala.

 

a rede cai quando a chuva inunda, as baterias acabam.

retornamos ao canteiro.

na falta de áreas com terra, reencantamos o concreto.

que agora em revolta, germina.

Referências 

[1] terreiro afetivo – várzea 2022 (nacampo.org) / aba Pedagogia dos Canteiros

[2] habitar colonial, ecologias decoloniais, Malcom Ferdinand

[3]Ybyrá.Tyba: Notes on hybrid cultivation and other sap memories – ArtsEverywhere

 

 

Rastros de Diógenes foi residente do Pivô Pesquisa 2023.

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