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19:37 - 17/10/2023
ULTIMA ATUALIZAÇÃO::
Carta fictícia de Forrest Bess colhida por Matheus Chiaratti

Corto com a lâmina de Deus a bolsa que pende, orvalhada entre estacas, nela faço um furo pra permanecer receptáculo e do períneo despejar o vazante, dissidente do corpo, corado. Navego nas linhas para enredar a natureza aquática nas minhas palmas de mão. Furo as iscas roliças no gosto do anzol pra amadurecer peixes. Eu os como, peixes, na minha casa de mão. O barco se desprende do filete que é a terra da minha casa, me permitindo avançar e avançar àquelas nunca as mesmas águas, retroceder pelos cascos, endurecer a superfície das ondas, repetir os braços da fragata em seus barrancos de músculos: voltar à casa com peixe e cortar à barrigada.

 

De volta ao meu corpo, dois tomos de luz, canivete, o afiado que corta a carne, destoa, eu quero voltar à terra – justo eu que gosto do mar. Eu quero voltar à terra, à seiva do meu corpo empalhado de sangue, os músculos fibrosos, botar meus dois pés bem juntos como se fossem uma mangueira secular, e nela, à terra, jamais morrer: arenosos músculos presos, raízes explodindo de jactantes sopros de vida, às vezes melancólico e morrer de pulgões, mas nunca morrer, morrer.

 

De volta ao meu corpo, receber e doar meu sêmen da terra e do mar e da tinta: doo aos meus ancestrais a minha força, mas peço-lhes a atenção de um menino, me dá mais tempo nessa terra! Me dá mais golfos nesse mar! Me dá o ser homem e ser mulher, corado, corrente, raptado, perfeito partido espesso espetado homem espetado mulher.

 

Tenho as visões de pensamento que pululam na minha caixa de cabeça, às vezes eu sonho com os símbolos, o olho de Deus, as esferas do céu, as linhas do escombro, os tesouros, eu pinto tudo como o desamarrar dos mistérios, aqueço a tela de algodão com uma pequena camada de thinner, depois espalho um branco espesso e depois um preto feroz, todos os azuis da minha casa e os verdes, os amarelos, os violáceos da lua, eu derramo com a fé de um condenado as partes do meu pensamento dormido, tintilo as ferramentas nos vasilhames guardados nos meus armários e uma lamparina aquece a minha cabeça. Não há furacão Carla que destrua o meu pensamento.

Forrest Bess: Untitled (No. 13), 1950 © The artist. Private collection, New York. Photo: Stewart Clements

Hospital Estadual de San Antonio, TX, 1974

 

Essa cama acesa na noite. No calar das quinas do quarto, figurinhas balançam ao meu redor flamejantes como quatro pequenos títeres estridentes, de um lado para o outro, e não me deixam dormir. O ruído dessa festa parece o estalar de madeira em noite fria, talvez seja isso, talvez não.

 

Tento adormecer e me lembrar das águas mansas de Chinquapin, mas não consigo, nem sequer o verde dos dias calmos, a água esvaziou. Nem dos asteroides que pintados mandei para a Lillian, eles acaram, nem existem mais.

 

Costumava ver aqueles bonecos em volta de casa no rancho, aquelas pernas arrastadas imensas encobertas pela moita grande da primavera, os pássaros comem os restos de peixe no calçamento, gaivotas brilhantes, eu as pintei, penas de uma numa tela e ficaram melhor que a pena de verdade, eram mais estreitas, mais firmes e brilhantes.

 

Tento pensar em tudo menos nas marionetes que me infernizam, não tenho papel e caneta para desenhar esses malditos bonecos na antenoite do meu sonho até cair. Quando amanhecia, ao passo de uma boa xícara, me lembrava das figuras e das formas e, vivamente, as colocava no papel e depois na tinta, né?

Matheus Chiaratti: Invocação a Forrest Bess, 2020, pintura e cachimbo

A carta de Bess integra o episódio de número 9, do podcast Pivote, desenvolvido pelo artista Matheus Chiaratti durante a residência do Pivô Pesquisa 2020 Ciclo I.

 

Para ouvir, clique aqui. Mais informações em https://pt.matheuschiaratti.com/pivote

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