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19:29 - 17/10/2023
ULTIMA ATUALIZAÇÃO::
abro cavernas – clara moreira

tocar do peito ao chão, tocar do peito ao chão, do peito ao chão – três vezes, é o que me pede a figura que habitará o desenho. preciso esvaziar os líquidos e procurar por uma secura fresca dentro da boca. a boca como cavidade evacuada vem fazendo nascer uma palavra, às vezes na forma de um som, mas em geral como uma coragem. movimentar os braços para colar o corpo na alma por pelo menos 50 minutos, marcar de alfazema o contorno deste lugar, esconder uma semente por aqui. eu estou neste lugar, caminho com os pés presos neste lugar. vem –

o tijolo deseja a casa, a fita de cetim é o contrato da promessa, o corpo cabisbaixo é o centro do mundo – sou feia é o mesmo que dizer que sou um monstro ser um monstro é mesmo que dizer que sou uma deusa e carrego com calma um rosto de pedra na minha cara de mulher. as divindades habitam longe. à distância, nossos gritos são sussurros e o eco das imagens soa como tijolos equilibrados, fitas soltas aos nós, partes do corpo. movo as ferramentas: tijolo, fita, corpo. embora os significados antigos tenham sido abandonados, ainda é possível edificar e pesar, voar e prender, unir as partes e dançar.

 

o tijolo e a fita pertencem à existência do meu corpo – olha – veja a continuidade muscular. mulher-cariátide, pois suspende o mundo. mulher-tijolo, pois perfurada. mulher-obra, pois incompleta. monumento ao início, monumento à ruína. em cima é duro, embaixo é mole.

poucos lugares me cabem dentro, ainda assim, eu precisei inventá-los. empurro as paredes com meu corpo, preciso segurar o teto com mãos e pernas, permaneço imóvel por um tempo até que o teto aprenda a se sustentar sozinho, o teto esquece que precisa de mim e então flutua. depois desaba sobre meu corpo, ajustando-se, formando a casca perfeita. fendas nas dobras. a fragilidade é vencida pois meu corpo não se rasga e os tijolos ainda estão inteiros. assim, abro cavernas. agora os vergalhões expostos são feitos de fitas de cetim e toda a caverna respira junto comigo. os tijolos me mordem carinhosamente e eventualmente trituro tijolos nos dentes. na minha saliva retorno o tijolo à sua forma de argila quente e úmida. e o tijolo chora saudades da montanha, relembra que o calor do forno trouxe-lhe à lembrança os tempos da atividade vulcânica.

eu choro pelos tijolos, lágrimas vermelhas de saliva argilosa

eventualmente as lágrimas petrificam

eventualmente a saliva petrifica minha boca aberta

o grito é capaz de esfarelar a saliva e retroceder a cerâmica, desfazer a queima, soltar os grãos. até então recife era um desfazer mútuo de várzeas e montanhas. agora sento-me na calçada para observar a coreografia que todos os grãos farão no ar, indo de volta a recompor as montanhas de barro roxo, vermelho, laranjas brasis e marfim. vejo a várzea reencharcando, enroscando meus pés com suas águas de cetim azul.

encontrei na minha mão um lápis e então fiz o desenho do meu tijolo. o desenho não teve um início, e mesmo vindo de fora do corpo não significa que não faça parte do corpo. indo atrás do desenho, fui ao ar suspensa por este olfato, todo o meu pensamento se moveu com as pistas, os indícios: descubro que o tijolo é quem carrega meu corpo, que a fita de cetim é a matéria aglutinante entre nós e que o espelho nos dissolve.

ao meu corpo não é possível atravessar uma lente

por outro lado, confio absolutamente neste espelho

posiciono meus tijolos e minhas fitas –

é preciso trazer os nós para a frente do braço, pois as fitas se assemelham com os meus ossos. além disso, seguro as fitas como se elas fossem lápis. as fitas são lápis. a outra mão faz um arco lento e apoia o tijolo no topo. o tijolo me sorri com seus orifícios. o ombro dói na articulação que suspende a promessa. as pernas não estavam por um triz. intuo o comportamento da fita de cetim, o desenho oscila no fio do espelho. este tijolo descansa em pé. olho-o por muito tempo. há uma carne grossa ao redor dos meus lábios, procuro pela posição da perna. retiro as roupas da vista. sinto uma constrição nas paredes do ar, solto a tinta no mar na forma de um cheiro no ar. certamente existe um meio onde o cheiro seria visível como fumaça na cor amarela, cor de biliro dourado, fumaça arenosa que corre diretamente para o meu nariz. este cheiro me encoraja pois ele é capaz de me proteger. ele afeta a temperatura e esquenta, unta-me. respiro-o, prendo o ar. eventualmente este cheiro petrifica meus dutos e, por fim, ganho a estrutura de que preciso. exalo de volta, respiro de volta. entre o papel e o pigmento, parte da fumaça amarela irá se fixar. por isso, sempre há o amarelo. ao seu lado, também serão aprisionadas algumas palavras, algumas canções, este ar frio, vozes ouvidas e hálitos. todo o tempo que separa o encontro do pigmento com o papel se preparou para este momento. desenhar é fiar de modo coreográfico o destino desse encontro. se enrolássemos de volta o fio do desenho não somente reproduziríamos a dança dos dedos, joelhos e braços, como também resgataríamos o pigmento na forma de um novelo. o lápis é um novelo.

meu movimento é da ordem do tremor, a mão gagueja o risco, o olho quer sobrepor a imagem que vejo no espelho com a imagem que surge no papel. a memória precisa atuar rapidamente entre o olho e o risco, mas deixou cair seus documentos durante a travessia por dentro do corpo acidentado, de telhas reviradas, tanta trepidação teve que atravessar. chegou despida, esqueceu o que ia dizer, por isso é preciso inventar um pouco. ela gosta disso – toda distorção revelará a autoria da autonomia dos músculos. desta forma cheguei ao contorno dos dedos dos pés e por fim, me contenho. andava cambaleante pois faltava ao desenho abrir os ossos dos pés como quem abre a mão para a quiromancia, como quem abre a mão para pegar um alimento. depois sentirei saudades do desenho como quem se apercebe de si. fechava os olhos e via o desenho se formando, os riscos nas voltas que o cabelo faz, a vista que se tem quando se está desenhando, contamina o pensamento. penso, sonho e vejo tudo a partir deste ponto de vista.

recolho meus tijolos, minhas fitas –

o tempo do desenho aniquila tudo ao redor, lento: da natureza do arrastar, imóvel, tem a natureza de uma longa caminhada que leva um milhão de dias cabendo dentro de um corpo. esta é uma parte do movimento inteiro. podemos supor o que vinha antes e o que vinha depois, mas sobretudo, sabemos que há um movimento antes e outro depois, como uma experiência única irreprodutível, do tempo em que escorrem um por um os grãos de um tijolo moído. um par de tempos, e a performance deixa de sê-lo, passa a ser o que sempre foi – a própria vida. sempre fui ela desde muito antes. o sacrifício é permanente, a promessa é a condição inerente e o desenho pertence à existência do meu corpo – olha – veja esta medula entre a minha mão e o lápis.

bem de perto,

é possível reconstituir a coreografia que me teceu.

imagino que a fita nos unirá a partir de hoje –

– hoje – estou no meio do percurso de uma dobra funda: o corpo dobrando sobre o desenho, o desenho dobrando sobre o corpo. há uma partícula que não consigo definir e que suspende e funde corpo e desenho. existe uma partícula zunindo, movendo o esterno na direção de perguntas, espelhos, partilhas, conversas que eu queria ter contigo. parece que o desenho vai transbordar das bordas, já se foi. parece que estou esculpindo através do desenho, parece que a dança é um desenho do instante que nunca se fixou, se não através de um desenho. há um som nesta dobra. tu ouvisse? queria te encontrar, alças, ganchos, e a gente poderia experimentar na escrita o desenho e as posturas do corpo, olhando os espaços que se amassam nas bordas. a ver o que acontece se eu te-me lançar tendo como prisma esta dobra imemorial corporificada em fricção com o meu próprio estado de latência e queimor. nestes tempos. neste dia de hoje que ainda está vivo em raivas e fascínios.

“abro cavernas”de clara moreira

texto e desenhos de clara moreira

fotos de bruna valença

 

texto, desenhos e fotos realizados durante a residência da artista no Pivô Pesquisa, 2022

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