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14:51 - 17/10/2023
ULTIMA ATUALIZAÇÃO::
Moacir dos Anjos sobre o Projeto Gameleira 1971

Projeto Gameleira 1971

 

A exposição de Lais Myrrha é um ‘projeto’. Um projeto associado a um lugar e a um momento: Projeto Gameleira 1971. ‘Projeto’ é palavra que usualmente quer alcançar o futuro, o que ainda está para ser feito, o devir incerto imaginado por quem cria. Como um projeto de arquitetura que desenha um lugar de trabalho e convívio. Como um projeto de engenharia que tece os modos exatos de o tornar coisa feita. Como um projeto de execução de uma tal obra, antes somente sonho e medida. Como um projeto político que associa sua construção física à consolidação de poder de mando. Como o projeto de erguer um Parque de Exposições desenhado por Oscar Niemeyer, calculado por Joaquim Cardoso, construído por empresas de nome Sobraf e Sergen e capitaneado por um governador chamado Israel Pinheiro. Um projeto feito para o bairro da Gameleira, na cidade de Belo Horizonte, em Minas Gerais. Um projeto que não se sabe mais ao certo quando começou, mas que nunca chegou a termo como pensado. Um projeto que terminou de forma abrupta em 4 de fevereiro de 1971, com o desabamento de parte da estrutura de concreto que cobriria o extenso edifício, matando de imediato 61 dos operários que o construíam.

 

A exposição de Lais Myrrha é um projeto; mas é um projeto ao revés. Embora se queira lançar ao futuro, o faz somente ao debruçar-se sobre um desastre que foi gradual e ativamente apagado do inventário de lembranças comuns aos habitantes do Brasil. Um desastre que, por ser tão pouco contado, pode a alguns parecer até não ter existido. Ao evocar e investigar o maior acidente da construção civil já ocorrido no país, o Projeto Gameleira 1971 se soma a um esforço conjunto, embora disperso, que quer desfazer a amnésia social produzida, em contextos diversos, sobre acontecimentos de importância inequívoca. Acontecimentos que, no mais das vezes, envolvem a imposição de danos a indivíduos ou grupos que não detêm os meios materiais e simbólicos para fazer de suas perdas um fato público. Esforço que quer tornar mais inclusiva e complexa a memória pública no país, ainda que, no caso da artista, sem a pretensão de construir narrativa definitiva e inteira. Afinal, é próprio de sua prática escavar conhecimento novo justamente nas elipses e nos lapsos; naquilo que falta ou que foi por algum motivo abandonado.

 

Não é por acaso que, em três trabalhos distintos e articulados, Lais Myrrha apresente mais pistas do que notícias claras sobre o ocorrido. No mais visível deles, constrói maquete de parte da cena que se seguiu ao desastre, feita a partir de uma das poucas fotografias conhecidas do edifício parcialmente tombado. Construção que reproduz, com acuidade e longe do lugar do acidente, a configuração casual das vigas caídas na Gameleira. Maquete que é, ademais, suficientemente grande para que o corpo a percorra e não somente a enxergue, fazendo ecoar alto, nele próprio, uma dor que ao longo de mais de quatro décadas foi reduzida a ruído. Operação que convoca o outro distante a lembrar do que houve, transformando uma imagem do prédio arruinado em monumento que dura somente o quanto puder durar cada um desses encontros. Em outro trabalho, é possível ler, nas superfícies de paredes, os nomes dos mais de cem operários finalmente encontrados mortos ou dados por desaparecidos depois que sobre eles desabaram dez mil toneladas de concreto. Arranjo ordenado e monótono de palavras que designam vidas distintas e que constituem, todas juntas nesse lugar, representação muda da violência simbólica que o esquecimento engendra. O terceiro trabalho, por fim, é composto pela imagem que orientou a construção da maquete e por um texto que informa sobre a decisão de demolir o edifício inteiro logo após o acidente, eliminando rastros do ocorrido. Texto que também sugere razões possíveis para o empenho em apagar esse desastre da memória nacional, entre as quais se enlaçariam proteção de reputações, ocultação de negligências e defesa de interesses políticos contrariados pelo fracasso da construção projetada.

 

Não importa ao projeto de Lais Myrrha, porém, estabelecer ou corroborar culpas pelo acidente. Não é esta a sua competência. O que a move é querer inscrever o esquecimento de um evento que causou a morte violenta e súbita de centenas de trabalhadores na teia cultural do país. Inscrição que não se produz por enunciação discursiva, mas através de uma sintaxe inventada que busca afetar a faculdade de lembrar de quem encontra os trabalhos no espaço expositivo. Espaço que não é lugar qualquer, mas a antiga sobreloja do edifício Copan, também concebido pelo arquiteto Oscar Niemeyer e parte importante do imaginário de um projeto moderno de Brasil que marca e molda, há muitas décadas, a cultura do país. Imaginário que instituiu a confiança quase cega em um futuro próprio e utópico, o qual hoje já se sabe que não vai chegar nunca. Imaginário que continua, todavia, informando iniciativas de naturezas diversas, mesmo que subtraído da generosidade que possuía em sua origem. Em tal contexto, o que a artista faz é afirmar a necessidade de promover o encontro do concreto duro com a carne humana que se rompe nesse contato ríspido. Encontro entre uma razão construtiva que ambiciona consertar ou reinventar o mundo e a miséria absoluta que por vezes essa razão produz. Somente assim não será mais preciso ou possível esquecer o que se passou em 1971 na Gameleira. Somente assim será possível lembrar, no futuro, muito do que se passa no país agora.

 

Moacir dos Anjos

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