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19:46 - 17/10/2023
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A convite do Pivô

Antonio Malta Campos, julho de 2017.

 

A convite do Pivô, fui conversar com três artistas que estão fazendo residência lá: Flora Rebollo, Jonathan Murphy e Thiago Barbalho. Fui em uma sexta-feira e conversei com cada artista separadamente, com intervalo rápido para almoço. A seguir, um breve relato de minhas impressões.

A primeira conversa foi com a Flora. Eu já conhecia o trabalho dela, de uma exposição coletiva no Instituto Tomie Ohtake, curada pelo Paulo Miyada. Depois, vi o trabalho dela no Centro Cultural São Paulo. Mas nunca tinha conversado com a artista, pessoalmente. No início do nosso encontro, fiquei olhando as obras na parede, e a Flora foi me explicando como ela trabalha: ela pega umas folhas de papel, grandes, e vai desenhando nessas folhas, com pastel, grafite, bastão a óleo, canetinhas e outros materiais (são muitas técnicas sobrepostas). Depois ela junta essas folhas numa montagem de parede, formando uma obra só, como se fosse uma pintura.

Olhando seu próprio trabalho, Flora mencionou uma questão que a afligia: não há escolha de cores. Ela disse que vai colocando qualquer cor e no final ela usou todas. O que dá unidade ao trabalho é o fundo, que pode ser preto ou grafite, ou branco. (Há também formas que se repetem, ovais, mas essas formas somem em muitos trabalhos. E surgem olhos, fitando o espectador.)

Pensando, na hora, na questão da cor, lembrei de Picasso, que dizia: “se o tubo de azul acabou, uso o verde”. Picasso usava cores sem nenhuma regra. Comentei isso com a Flora, generalizando e afirmando que considero qualquer regra, principalmente as regras modernistas, como “degenerações” de um princípio anterior e primordial, o da ausência de regras (a partir da falência dos modelos clássicos).

Mencionei, na conversa com a Flora, que o Jacques Rancière é a minha referência teórica, mas não desenvolvi o tema, o que faço brevemente agora, se o leitor me permitir: Rancière situa o início da modernidade estética (que ele prefere chamar de Regime Estético) nas especulações filosóficas dos autores alemães do século XVIII e XIX (Kant, Schiller, Hegel). Para Rancière, essas especulações – especialmente as “Cartas para a Educação Estética do Homem”, de Schiller – elaboram, pela primeira vez, um conceito de arte (estético) que independe de regras para a produção artística. Com isso, as regras clássicas baseadas na imitação da natureza ficam, por assim dizer, desautorizadas, pois a arte passa a ser definida a partir de uma especulação estética e filosófica.

Como esse “estético” (de extração filosófica) está ligado à percepção do Belo, e não mais a uma regra prática de produção artística (a antiga Mímese), temos então que a origem do que seria “artístico” passa a ser o próprio olhar que percebe, e não mais a mão que produz.

Isso equivale a dizer que não existem mais regras para fazer arte. E, paradoxalmente, todas as regras possíveis são válidas, desde que consideradas na sua arbitrariedade. (Flora: espero suas novas obras com cores escolhidas).

Em seguida, depois do almoço, fui falar com o Jonathan Murphy, artista inglês que está em São Paulo pela primeira vez. Enquanto ele fazia café, eu fiquei olhando o trabalho. Aparentemente, um caos. Como o da Flora, aliás, mas a Flora mantém o caos dentro das bordas do papel, e o Jonathan não. Fica tudo espalhado no chão e na parede: um monte de desenhos, colagens, objetos. Até pintura ele faz, mas no Pivô ele abandonou a pintura em tela, e fez algumas pinturas diretamente na parede, com tinta Suvinil (no Brasil, o material de arte é caríssimo, ele disse).

Não quero soar repetitivo. Mas, na hora, me veio a questão da ausência de regras e do nosso olhar, estético, que permite que qualquer coisa seja estetizada. Até mesmo um pano velho e sujo: o pano, nesse caso, faz parte de um trabalho de chão do Jonathan, composição que ainda inclui uma luva (nova) e desenhos variados, tudo disposto cuidadosamente por cima de um pedaço de papel pardo.

Aliás, falar em caos, no caso do Jonathan, é provavelmente inverter a questão. Pois tudo o que ele faz é meticulosamente pensado. Não há nada jogado, não há nada fora do lugar. O que não significa que os trabalhos estejam prontos. Eu entendi que ele fica mudando os trabalhos, o tempo todo. É o que parece. Ele até comentou que, nos eventos de ateliê aberto do Pivô (a cada três meses), o que o público vê é apenas o estágio em que o trabalho está naquele momento. Não é o trabalho final. Talvez não exista o “trabalho final”. O que existe é o processo.

Depois de terminar a conversa (e o café que o Jonathan amavelmente me serviu), fui conversar com o terceiro artista do dia, Thiago Barbalho.

O Thiago vem de outras experiências e está chegando agora no mundo das artes. Por isso mesmo, a perspectiva do Thiago é bastante original. O trabalho artístico dele, a princípio, é de desenho, e possui uma estética de quadrinhos e de ilustração. Mas esse não é ponto central da questão. O que faz do Thiago um artista interessante é que, ao mesmo tempo em que ele desenha, ele pensa. E escreve.

Talvez, na cabeça dele, essas coisas ainda estejam separadas, pois o Thiago, natural de Natal e formado em filosofia, vem de uma breve carreira de escritor que ele supostamente estaria abandonando, agora que ele começou esse novo trabalho com o desenho. Como ele me reiterou, no desenho não há palavras.

Mas o que eu senti, conversando com ele, é que longe de ter abandonado a literatura, ele, na realidade, está incorporando a prática do desenho como um respiro e um silêncio que estimulam, paradoxalmente, o livre exercício do seu pensamento. Antes de ele mesmo perceber, ao desenhar figuras coloridas ele já está pensando e refletindo sobre questões existenciais, profundas e fundamentais, que ele sabe traduzir em palavras, quando solicitado. Estimulei-o a continuar desenhando, pensando e escrevendo.

Está aí um breve relato/reflexão do meu dia no Pivô. Quando saí de lá, quatro horas da tarde, não sabia se ia para casa ou para o ateliê, e dei umas voltas pelo centro da cidade. Fiquei absorvendo a tarde e o movimento. Passei em frente ao Edifício Esther, onde tive ateliê, nos idos de 1983. Me veio a sensação de que a vida é longa. Mas a arte é mais.

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